quinta-feira, 6 de junho de 2013

JONAS, O SALAFRÁRIO

Jonas já nasceu salafrário. Ainda no berçário, sempre desandava a chorar. Não porque tivesse febre, fome ou dor de barriga. Fazia-o apenas para que a enfermeira, que usava uniforme decotado e dispensava sutiã, se debruçasse diante dele e lhe permitisse ver os seios. Aos dois anos, na creche, vendia leite falsificado, feito com água e farinha de trigo, às outras crianças, recebendo o pagamento em balas ou doces. Colocava maracujina no suco de laranja das coleguinhas e aproveitava-se do sono dessas para pintar-lhes os rostos com tinta guache.
Quando entrou para a escola, procurou sentar-se na primeira fila, bem diante da mesa da professora. Não que fosse aluno aplicado , interessado nas aulas, mas porque ela se descuidava vez por outra ao sentar-se , abrindo as pernas sob a mesa, o que dava-lhe condições de ver-lhe as calcinhas.
Na adolescência, já a sua primeira namorada foi conquistada de um modo não lá muito ético. É que o nosso protagonista tinha um colega de classe um tanto quanto tímido, que interessou-se por uma menina de uma outra turma, que correspondia aos seus sentimentos; entretanto, como o rapazinho não se encorajava a declarar-se direta e pessoalmente, resolveu um dia mandar recado pelo amigo:
-- Diz a ela que eu tô apaixonado . Se ela gostaria de ir ao cinema comigo...
O nosso rapaz, todavia, como também se sentira atraído pela mesma menina, tornou a mensagem extremamente diversa da enviada:
-- O fulano pediu a você que o desculpasse, mas que não alimentasse qualquer esperança com relação a conquistá-lo, porque gosta de meninos e não dá a mínima pra meninas.
Ante a perplexidade da mocinha, continuou:
-- E disse mais, só que pra mim em confidência: que você é uma bobalhona que se apaixonou tanto por ele, que é incapaz de namorar qualquer outro rapaz deste colégio. O que é uma pena, já que eu tô tão interessado em você e...
-- Você topa me namorar?! – atalhou a colegial, magoada, furiosa e resoluta.
O colega de classe de Jonas ficou sem entender nada, porque a moça passou a virar-lhe o rosto a partir de então, além de namorar o seu desleal mensageiro.
--A gente não entende as garotas. – explicou-lhe o infiel colega  uma vez – Quando eu fui dar o recado, ela me disse que não tinha o menor interesse em você e que eu, sim, sou o rapaz dos seus sonhos.
Não chegou, ao completar dezoito anos, a ingressar nas forças armadas, graças a um atestado médico de insuficiência física, atestado com timbre de um hospital público que obtivera de um falsário. Liberado de suas obrigações em relação à pátria, resolveu, no entanto, mesmo depois de vinte e tantos anos, não ingressar no mercado de trabalho.
--Querem vocês -- dizia a seus críticos – que eu engrosse essa camada de trabalhadores explorados que padecem neste país? Abster-me de trabalhar é antes de tudo um protesto contra a perversa relação de trabalho que grassa nesta nação.
Houve uma época em que deu a impressão de querer dedicar-se à caridade, e não é que alugou um terreno, armou um "stand" e montou uma igreja, a Igreja do Jesus Miraculoso, onde fazia enxergar os cegos, ouvir os surdos, falar os mudos, numa sucessão de milagres jamais vista? É bem verdade que cobrava donativos pesados, mas explicava a suas ovelhas que a igreja era de Deus e Deus não era mendigo para receber parcas esmolas, além de pô-los a par de que precisava dar continuidade à sua ( a dele, Jonas) obra incomensurável e magnífica: a construção, para os seus seguidores, de um condomínio de moradias no Céu.
Essa história toda de condomínio celeste, milagres, caridade só deu em água por culpa de uma mulher mal-amada, disposta a jogar por terra toda a vastidão do trabalho do nosso pastor. É que um dia, mal Jonas acabara de fazer enxergar um cego que o era há já dez anos, a mulherzinha gritou do meio da multidão:
--É mentira! Esse homem nunca foi cego!
O pastor indignou-se e dirigiu-se a ela com a autoridade moral natural e peculiar dos homens do Senhor:
--A senhora duvida de um milagre de Deus?
--Deixa de palhaçada, seu safado! Ele é meu marido e fugiu ontem com a vizinha. Pelo menos até ontem tava enxergando muito bem!
Foi um corre-corre danado, o falso cego levando guardachuvadas da mulher, gorda e mal-vestida, Jonas fugindo à ira da multidão, as pedras atingindo-lhe os calcanhares, e o episódio mostrando-nos mais uma ironia da vida, onde se pode descer da magnitude à execração, do mais elevado pedestal à situação mais chã. Assim o nosso amigo sofreu o primeira grande revés de sua vida.
Mas tinha capacidade para reerguer-se! E o conseguiu através de um casamento bastante ... digamos... satisfatório. A mulher era um pouco mais velha, se levarmos em conta que ele contava uns trinta anos e ela, setenta e cinco. Uma viúva doente e que herdara alguns bens do marido...
--Vejam só, meus amigos – costumava comentar entre os companheiros de copo, no período de recém-casado – duas bênçãos vieram a mim ao mesmíssimo tempo: o amor e a boa-sorte.  E, num gesto de auto-exaltação:--É a recompensa pela bondade, meus irmãos! Eu me dei à caridade, à probidade e à honradez. Deus me deu uma bela e remediada mulher por minhas obras e minha conduta neste mundo.
A conduta de Jonas dispensava comentários, a expressão remediada se adequava perfeitamente à situação financeira da mulher; todavia, bonita era uma palavra jocosa para se fazer alusão à mencionada senhora. Ela tava  "no bagaço", tinha setenta e cinco anos e aparência de oitenta e cinco. Tanto que o recente esposo tinha dificuldades em cumprir suas obrigações conjugais, sendo em muitas das noites auxiliado (ou melhor, salvo) pelos soníferos que vivia a colocar nos sucos de tomate que a pobre mulher tinha o hábito de tomar após o jantar.
Enfim, a senhora morreu no tempo mais ou menos previsto por Jonas, mas este não viu sequer a cor de sua herança, pois os credores da finada deixaram-na pobre como um indigente poucos dias antes de sua morte, com todos os bens e as contas bancárias penhoradas.
Foi aí, então, que o nosso homem teve a sua segunda queda na vida .
Nosso amigo houve assim de enfrentar a dura luta pela sobrevivência. Teve de se valer de pequenos expedientes como vender pardais pintados de amarelo para passarem por canários e fazer outros pequenos "bicos", tudo pelo suado pão dos dias. Outros biscates, aliás, de vez em quando lhe rendiam ganhos bastante razoáveis, sobretudo com o golpe da mulher adúltera.
Esse golpe era, aliás, bastante simples: Jonas associou-se a uma morena dotada de inúmeras e inquestionáveis virtudes – bunda grande, peito em pé, coxas grossas e torneadas, olhar lascivo e lábios carnudos – que, quer num ponto de ônibus, "shopping" ou que lugar fosse, olhava insinuante e insistentemente para o sujeito que lhe parecesse ter a carteira recheada. A vítima se aproximava, os dois conversavam e trocavam lisonjas, Celina, a morena, convidava-o a ir à sua casa, esse ia, os dois se despiam no quarto, ela fazendo que antes o indivíduo deixasse as roupas sobre uma cômoda que ficava bem próximo à porta do quarto. A cama ficava bem longe da cômoda e encostada à janela, e, quando os dois iam iniciar o ato sexual, Jonas, que sempre passava todo o tempo escondido na sala, gritava:
--Sua vagabunda! Desta vez eu mato você e o seu amante! –e metia a mão na maçaneta, abrindo a porta e surgindo diante do coitado com um revólver sem bala em punho.
Jamais um dos pegados no truque quis ir até a cômoda para pegar as roupas e a carteira, todos pulavam a janela nus como estavam. Os dois cúmplices riam muito nessas ocasiões, dividiam o dinheiro e Jonas é que se regalava nas carnes bronzeadas da gostosona.
Essa sociedade só se desfez porque o nosso amigo sofreu o seu terceiro golpe. Houve um dia em que Celina gostou de verdade de um sujeito, um cara grandalhão e musculoso como um hércules. Quando o tal estava nu e Jonas começou a bradar, a morena segurou o parceiro pelo braço, impedindo-o de pular:
--Não pula não, meu bem, que o revólver é de brinquedo.
Jonas arregalou os olhos, quedado, viu de repente aquele gigante nu crescer diante dele, e apanhou copiosamente... numa surra memorável, inesquecível.
Sumiu durante umas três semanas. Quando reapareceu, entrou no bar lotado de conhecidos, o ar compenetrado, e não sorriu nem aceitou as bebidas que lhe foram oferecidas.
--Senhores! – bradou solenemente – Quero pedir-lhes o silêncio por um momento, apenas para dizer-lhes que estou de partida.
Quiseram dizer alguma coisa, mas ele os conteve com um gesto, seguiu:
--Um homem deve ir sempre ao encontro de seus iguais e seus pendores, um homem deve ir sempre ao encontro de seu destino. Adeus, senhores! – e saiu botequim afora, sem atender a qualquer voz que o chamasse, sem dar qualquer explicação.
Sumiu do bairro, nunca mais ninguém o viu nem soube dele. E vez por outra ficavam a conjeturar sobre que rumo tomara na vida, o que quisera dizer com suas poucas e formais palavras. A que iguais se referira? A ladrões, vigaristas, golpistas, assaltantes? Não, assaltantes não: Jonas nunca fora violento. Nem os tais iguais deveriam ser desonestos, mas tão somente tristes, já que ele tinha o ar tão sério e compungido... E o que quisera dizer quando falou em ir ao encontro de seus pendores? Vigarice, calhordice, desonestidade...? Não, pois e o semblante tão austero...? Além disso, aquela merecida surra provavelmente o havia regenerado. Ele falava de algum pendor sério, talvez para a tristeza – não é o que sugeria em sua expressão? Reunir-se-ia a outras pessoas tristes, uma associação dessas de anônimos que há por aí. Ou quem sabe tornar-se-ia monge, viveria num mosteiro em lugar ermo e distante...? Não, meu Deus! Estaria ele pensando em suicídio, juntar-se a outras almas igualmente tristonhas? Meu Deus! Que tragédia! Foi isso que quis dizer ao referir-se a ir ao encontro do próprio destino! Só podia ser! Ir em busca de seus iguais era ligar-se no plano sobrenatural a outras almas infortunadas, o infortúnio era o seu pendor, e a morte, o meio de chegar a tal destino. Os boatos rolavam com frequência.. Jonas se matara. Jonas fora para um mosteiro. Jonas tornara-se um eremita. Integrara-se a uma quadrilha de falsários. De vigaristas. De assaltantes. Jonas casara-se com uma milionária, morava no estrangeiro.
E assim os rumores foram indo e vindo, de boca em boca, até que um dia uma barulhenta e perturbadora carreata parou bem em frente ao boteco que outrora Jonas frequentava, e adivinhem quem estava de pé na carroceria no carro principal, com uma faixa enorme acima da cabeça! Adivinhem quem! Quem? O próprio, minha gente! E na faixa se lia: “Votar em Jonas Pereira é votar em trabalho e honestidade.” Jonas desceu do carro e abraçou os amigos, pediu votos e pagou bebidas, sorriu muito e comentou com entusiasmo:
--Um homem com os meus predicados é nascido e feito sob medida para a carreira política.
E o nosso protagonista não só teve os votos dos amigos, como também elegeu-se na condição de um dos políticos mais votados daquelas eleições.

Nenhum comentário:

Postar um comentário