quinta-feira, 23 de maio de 2019

FABULAZINHA DE DEUS ABANDONADO

Era um dia como outro qualquer, até que subitamente ouviram-se trombetas que encheram o céu e a terra, e a voz do arcanjo Gabriel anunciou:
-- Filhos do Senhor, parai todos e ouvi atentamente o que o nosso Deus tem a vos falar!
O mundo inteiro parou e silenciou. A voz do Senhor, bonita, grave, sonora, cheia de eco de uma acústica celestial, principiou:
-- Filhos... tenho uma péssima notícia para vos dar.
O mundo, ainda quedado, agora se via aflito e lotado de curiosidade:
-- Tendes visto que tudo tem piorado? As catástrofes naturais têm sido mais frequentes. A ambição, mais do que nunca, tem gerado e alimentado  guerras. Os homens vêm agindo com o desamor e crueldade da era pré-cristã, como se tudo o que o Messias pregou não fosse para ser levado a sério. O crime a cada dia ganha mais corpo e força, pouco hoje se escondendo, tamanho o seu poder. Os maus políticos, já existentes na Antiguidade, permanecem invulneráveis, impunes, crescentes em número, existindo hoje numa maioria superior à da Antiga Roma.
"Não percebeis, filhos, o que está acontecendo?"
As pessoas permaneciam caladas, Deus prosseguiu :
--A Natureza vem sendo esmagada pelos homens, as espécies animais estão em processo de extinção mais acelerado. Tudo o que é ruim está crescendo em número e tamanho e tomando conta do mundo. O "Big Brother Brasil" vingou e é sempre campeão de audiência, os seus congêneres também arrebanham um tremendo público! Os programas de auditório têm a cada dia mais ibope. Todos os aparelhos de som tocam "funk" e pagode. Não percebeis o que ocorre? Não percebeis?
Os habitantes da Terra permaneciam silentes, todos ainda aparvalhados de perplexidade.
-- Pois eu vos digo, meus filhos. Preparai-vos para ouvir.
Seguiu o silêncio, Deus vociferou:
-- Perdi a guerra contra Satanás.
Um "oh!" geral, mundial e desolado. O Senhor continuou:
-- Mais do que isto, meus filhos... - uma grande pausa para rufarem os tambores, o Pai Eterno tornou: - Perdi o poder.
Nunca se viu um "oh" tão desesperado, desolado, desesperado, tão geral e tão sonoro. Desmaios, gritos, ataques histéricos, internações, uma tempestade moral no mundo.
-- Se quiserdes permanecer comigo - seguiu Deus - estarei sempre convosco. Mas ficai sabendo que agora nada mais posso, já que, infelizmente, só o Diabo tem poder.
Despediu-se (até porque Deus é objetivo, não fica falando à toa):
-- Até o momento em que algum de vós me quereis falar.  Sede felizes.
Alguns dias após o imensurável, mundial e descomunal choque, as pessoas começaram a comentar:
-- E agora?  O que será de nós?
-- Pois é...
-- Veja só! Deus sem poder, onde se viu?
-- Uma desgraça! Agora o poder está nas mãos do outro.
-- Outro?
-- É, o outro!
-- Outro?
-- É. Aquele cujo nome não se deve falar.
-- Ah, é...!!
-- O outro...
-- O outro...
-- Cujo nome não se pode falar...
--... não se pode falar...
-- Ora! Mas por que não??
-- É! Por que não?
-- Ora essa!
-- É! Ora essa!
-- Pensando bem, o outro sempre foi bem mais simpático... Deus sempre fechadão, lá na dele, muito sério, achando tudo imoral e errado...
-- É. O outro sempre foi alegre, galhofeiro, gozador..
-- Também sempre achei!
-- Nunca proibiu a gente de nada. A gente sempre pôde sambar, se despir, cornear, beber, matar, farrear, colocar o pé na frente do garçom...
-- Pois é! Muito mais liberal, muito mais sem frescura. Sempre deu à gente inteira liberdade.
-- Apoiado! Acho que agora a gente vai ser muito mais feliz com o outro. E eu falo o nome dele, sim! Satanás, pronto!
-- Também falo: Satanás!
-- Isso! Louvado seja Satnás!
-- Onde se viu? A gente vivia numa repressão danada, agora vai ter liberdade e felicidade.
-- Um Deus sem poder... De que adianta? Ora essa!
-- É... Um Deus  sem poder... Onde se viu?
E assim as pessoas, adesistas, interesseiras, ingratas, prostitutas que são, passaram a devotar-se e  a preces ao diabo.
Moral: quem não tem poder ou vantagem a oferecer, vive sem amigos e ignorado por  todos.

Barão da Mata

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