Banana,
desodorante, cotonetes. Armando mal
dormiu por causa da mesma impressão de que faltava algo importante. Levantou
três vezes durante a noite para examinar a gaveta de remédios. Assim que amanheceu,
correu e consultou a agenda. Só então, convenceu-se de que não havia negligenciado
nenhum compromisso. Voltou ao banheiro. Barbeador, creme, escova, pasta, tudo em dia.
Mas aquela sensação não parava de incomodar.
Não pretendia
ficar o dia inteiro a conferir o estoque da casa. Decidiu ir logo às compras.
Catarina, a mulher, protestou, não era dia de mercado. A dispensa estava cheia.
Para ele, não importava. Havia algo muito além da dispensa em questão. Ademais, não estava disposto a fazer vontades para a esposa. Algo lhe faltava. Ia
e pronto.
Catarina reclamou meia hora, e depois desistiu. Achando o marido um tanto estranho, sugeriu uma lista
de compras. A voz dela irritou Armando ainda mais, mas ele acabou gostando da ideia. Trivialidade à
parte, aquela era uma oportunidade de descobrir o que precisava tanto lembrar,
para simplesmente não enlouquecer.
Arrancou a
caderneta e o lápis que a mulher vinha trazendo prestativa e passou a rabiscar,
concentrado, tudo o que pretendia trazer, desde iogurte a graxa de sapatos.
Assim que inseria um novo item, respirava fundo e aguardava para perceber se aquela
comichão insuportável tinha sumido de sua consciência. Mas ela ainda estava lá.
- Mulher, o
que era mesmo que o Armandinho gostava de comer antes de ir pra escola? – pediu
ele, com certo desespero. Ela respondeu prontamente, mas sem esperanças de
ajudar:
- Geleia de
mocotó, Mozão. Mas ele parou de gostar
uns dez anos antes de casar. Desde então, não entrou mais geleia aqui em casa.
Ele não disse
mais nada, só pensou “Mozão é o cacete”. Com as chaves do carro na mão tomou o
rumo da porta. A solução estava mesmo no mercado. Lá, ele daria de cara com o
que precisava. A memória voltaria instantânea e tudo seria como antes.
Armando detestou
quando Catarina insistiu para ir junto e entrou no carro. Sabia que cada sugestão
inconveniente traria prejuízos à difícil tarefa identificar, enfim, o que lhe
faltava. No fim, assentiu por pura preguiça de argumentar com ela. Definitivamente,
não valia a pena.
No caminho,
ele se entregou aos devaneios acerca do momento em que deparasse com seu
tesouro nas prateleiras do supermercado. Seria uma gôndola repleta de produtos
coloridos. Clientes e funcionários viriam felicitá-lo. De repente, uma música começaria
a tocar e todos voltariam cantando e dançando, como no encerramento de um filme
indiano, produzido em Bollywood. Na volta ele passaria num boteco, pediria a
cerveja mais gelada, “a que está guardada para o dono”, e brindaria discursando
com a sua descoberta na mão.
- Isto nunca mais
vai faltar em minha vida!
Sua ilusão foi
bruscamente interrompida por Catarina, que queria conversar e percebeu que o
marido estava voando. A mulher tentava recordá-lo de como se divertiam no
começo do casamento, sempre que ela se enrolava para fazer a lista de
compras em ordem alfabética. Ela queria waffles,
mas não sabia direito onde incluir a palavra.
Naquela época,
ele dizia que não precisava comprar porque ele ia procurar a receita e fazer em
casa, só para ela. Agora ele só pensava o quanto era ela estúpida e gulosa.
O sinal fechou. O homem tirou o papel dobrado do bolso e passou a mirar uma vez os
itens da lista. Aos poucos, parecia que se desenrolava,
fio por fio, o novelo de sua memória. Por sua vez, Catarina agora falava dos
sabores de sorvete que iria comprar. Flocos ou napolitano, a dúvida era a mesma
desde os primórdios do matrimônio.
Armando lembrou-se
então que no início, ele sempre chegava do trabalho com um sorvete diferente
para Catarina. Quando ele trazia flocos ela queria napolitano. Ele, então, trazia
flocos e napolitano, para ela escolher. Ela preferia os dois.
Lembrou também
das vezes em que o supermercado não estava cheio e eles ficavam aguardando surgir alguém
no mesmo corredor, em sentido contrário, momento em que Armando perguntava em
voz alta:
- Catarina,
quer “catchup”?
A mulher
respondia:
- Agora não,
Armando, espera esse pessoal passar que eu tenho vergonha – e caíam juntos na
risada, enquanto ouviam comentários moralistas ou críticas pela idade da piada.
Vieram à tona os primeiros protestos sobre o excesso de doces, que estavam acabando com as formas do corpo da mulher. Mas ele não conseguia recordar quando foi que deixou de se importar e desistiu de falar qualquer coisa a respeito. Por
fim, antes de o sinal abrir, reviveu o momento em que percebeu que as afinidades
não eram quantas imaginava, e que não suportava mais o temperamento brusco da
mulher.
Ao ouvir as
buzinas, Armando guardou de volta a lista de compras e examinou o rosto redondo
de Catarina. De repente, ele notou. O que havia acabado, não tinha jeito de
repor, comprar, nem trocar por um modelo novo.
O carro
arrancou e um longo silêncio se fez até o final do percurso. Preocupada sem
saber com o que, como se a pulga de Armando saltasse para a sua orelha,
Catarina perguntou baixinho o que estava acontecendo:
Nada, não,
Mozão – ele disse – é que achei que iria beber uma cerveja bem gelada, mas vou
mesmo ao supermercado.
(Leônidas Falcão)
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