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terça-feira, 4 de dezembro de 2012

A LISTA DE COMPRAS




Banana, desodorante, cotonetes.  Armando mal dormiu por causa da mesma impressão de que faltava algo importante. Levantou três vezes durante a noite para examinar a gaveta de remédios. Assim que amanheceu, correu e consultou a agenda. Só então, convenceu-se de que não havia negligenciado nenhum compromisso. Voltou ao banheiro.  Barbeador, creme, escova, pasta, tudo em dia. Mas aquela sensação não parava de incomodar.

Não pretendia ficar o dia inteiro a conferir o estoque da casa. Decidiu ir logo às compras. Catarina, a mulher, protestou, não era dia de mercado. A dispensa estava cheia. Para ele, não importava. Havia algo muito além da dispensa em questão. Ademais, não estava disposto a fazer vontades para a esposa. Algo lhe faltava. Ia e pronto.

Catarina reclamou meia hora, e depois desistiu. Achando o marido um tanto estranho, sugeriu uma lista de compras. A voz dela irritou Armando ainda mais, mas ele acabou gostando da ideia. Trivialidade à parte, aquela era uma oportunidade de descobrir o que precisava tanto lembrar, para simplesmente não enlouquecer.

Arrancou a caderneta e o lápis que a mulher vinha trazendo prestativa e passou a rabiscar, concentrado, tudo o que pretendia trazer, desde iogurte a graxa de sapatos. Assim que inseria um novo item, respirava fundo e aguardava para perceber se aquela comichão insuportável tinha sumido de sua consciência. Mas ela ainda estava lá.

- Mulher, o que era mesmo que o Armandinho gostava de comer antes de ir pra escola? – pediu ele, com certo desespero. Ela respondeu prontamente, mas sem esperanças de ajudar:

- Geleia de mocotó, Mozão.  Mas ele parou de gostar uns dez anos antes de casar. Desde então, não entrou mais geleia aqui em casa.

Ele não disse mais nada, só pensou “Mozão é o cacete”. Com as chaves do carro na mão tomou o rumo da porta. A solução estava mesmo no mercado. Lá, ele daria de cara com o que precisava. A memória voltaria instantânea e tudo seria como antes.

Armando detestou quando Catarina insistiu para ir junto e entrou no carro. Sabia que cada sugestão inconveniente traria prejuízos à difícil tarefa identificar, enfim, o que lhe faltava. No fim, assentiu por pura preguiça de argumentar com ela. Definitivamente, não valia a pena.

No caminho, ele se entregou aos devaneios acerca do momento em que deparasse com seu tesouro nas prateleiras do supermercado. Seria uma gôndola repleta de produtos coloridos. Clientes e funcionários viriam felicitá-lo. De repente, uma música começaria a tocar e todos voltariam cantando e dançando, como no encerramento de um filme indiano, produzido em Bollywood. Na volta ele passaria num boteco, pediria a cerveja mais gelada, “a que está guardada para o dono”, e brindaria discursando com a sua descoberta na mão.
- Isto nunca mais vai faltar em minha vida!
Sua ilusão foi bruscamente interrompida por Catarina, que queria conversar e percebeu que o marido estava voando. A mulher tentava recordá-lo de como se divertiam no começo do casamento, sempre que ela se enrolava para fazer a lista de compras em ordem alfabética. Ela queria waffles, mas não sabia direito onde incluir a palavra.
Naquela época, ele dizia que não precisava comprar porque ele ia procurar a receita e fazer em casa, só para ela. Agora ele só pensava o quanto era ela estúpida e gulosa.
O sinal fechou. O homem tirou o papel dobrado do bolso e passou a mirar uma vez os itens da lista. Aos poucos, parecia que se desenrolava, fio por fio, o novelo de sua memória. Por sua vez, Catarina agora falava dos sabores de sorvete que iria comprar. Flocos ou napolitano, a dúvida era a mesma desde os primórdios do matrimônio.
Armando lembrou-se então que no início, ele sempre chegava do trabalho com um sorvete diferente para Catarina. Quando ele trazia flocos ela queria napolitano. Ele, então, trazia flocos e napolitano, para ela escolher. Ela preferia os dois.
Lembrou também das vezes em que o supermercado não estava cheio e eles ficavam aguardando surgir alguém no mesmo corredor, em sentido contrário, momento em que Armando perguntava em voz alta:

- Catarina, quer “catchup”?        

A mulher respondia:

- Agora não, Armando, espera esse pessoal passar que eu tenho vergonha – e caíam juntos na risada, enquanto ouviam comentários moralistas ou críticas pela idade da piada.

Vieram à tona os primeiros protestos sobre o excesso de doces, que estavam acabando com as formas do corpo da mulher. Mas ele não conseguia recordar quando foi que deixou de se importar e desistiu de falar qualquer coisa a respeito. Por fim, antes de o sinal abrir, reviveu o momento em que percebeu que as afinidades não eram quantas imaginava, e que não suportava mais o temperamento brusco da mulher.

Ao ouvir as buzinas, Armando guardou de volta a lista de compras e examinou o rosto redondo de Catarina. De repente, ele notou. O que havia acabado, não tinha jeito de repor, comprar, nem trocar por um modelo novo.

O carro arrancou e um longo silêncio se fez até o final do percurso. Preocupada sem saber com o que, como se a pulga de Armando saltasse para a sua orelha, Catarina perguntou baixinho o que estava acontecendo:

Nada, não, Mozão – ele disse – é que achei que iria beber uma cerveja bem gelada, mas vou mesmo ao supermercado.
 
(Leônidas Falcão)

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