Não podemos nos deixar iludir pelos candidatos às eleições deste ano. Em campanha, sempre são contra tudo o que é ruim, injusto e sórdido. Mas, quando eleitos, são contra tudo o que é justo, bom e digno.
Barão da Mata
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sábado, 26 de maio de 2018
NÓS, OS MALUCOS BELEZA DE JACAREPAGUÁ
Os personagens, histórias e situações são todas reais, apenas os nomes são fictícios.
Conheci a Ângela num boteco da Estrada de Jacarepaguá, de uma forma meio adversa. Era professora de história, uma mulher branca, meio gorda e masculinizada, tez avermelhada, descendente de alemães. Era 1990, dia do jogo Brasil X Argentina, em que perdemos por um a zero. Eu passara a tarde assistindo ao evento esportivo, certo de que o Brasil venceria de goleada, mas o priomeiro gol não saía; não saía e acabamos tomando ao final do jogo. Terminada a partida, desci, entrei no bar e pedi uma cerveja. Os comentários não podiam ser outros senão o jogo, e eu tive a infelicidade de dizer que torceria pela Argentina na final. Foi quando a Ângela, que nem sequer me vira antes, retrucou com veemência:
--Pela Argentina não torço! Meu pai foi adido comercial lá... -- depois baixou a cabeça e resmungou sem nenhum cuidado para que eu não ouvisse: "Idiota!"
Alguns dias depois, entretanto, acabamos conversando amenidades e o momento político. Foi quando passou a simpatizar comigo: ambos éramos radicalmente contra o governo Collor e acreditávamos que existia socialismo; assim, éramos de esquerda. Comunhão de pensamentos à parte, numa outra oprtunidade ela me soltou um outro "idiota". Juro que numa terceira vez eu acabaria por me acostumar.
O nosso grupo tinha o Maurício, um jovem músico recém-formado, também simpatizante do socialismo e que, além de ser um etilista respeitável, um dia me exibiu o dedo inchado e disse que conseguira aquela proeza cheirando cocaína. Como aquilo sucedera eu não me lembro, não sei se por ter sido afetado de esquecimento pós-alcoólico ou se por ele não ter explicado nada simplesmente. Noutra ocasião apareceu com um braço na tala e tipóia, e me contou:
--Foi num condomínio lá da rua Ituverava...
--O que foi que aconteceu? -- perguntei.
--Tinha ido tomar umas cervejas e, no caminho de casa, deu vontade e eu quis dar uma mijada em frente ao condomínio. Apareceu um "gorila branco", que fazia a segurança por lá e disse pra eu não fazer. Eu respondi: "Meu amigo, a rua é pública", e comecei a mijar. O cara me arrebentou na porrada: era um gorila, gorila mesmo!
Uma vez convidei a Ângela pra jantar em minha casa, com minha primeira mulher e minhas filhas, que ainda eram pequenas. Foi feita uma peixada, e ela já chegou embriagada e roubando um pedaço de posta do prato de uma das minhas meninas. Depois de as crianças dormirem, propôs que eu a ex-esposa fumássemos maconha no apartamento, junto com ela. Nunca fomos de drogas, não topamos. Passados alguns minutos, a mulher foi ao banheiro, saiu e, de volta para a sala, remexeu-se um pouco e deixou que lhe caísse a bermuda de cadarço, ficando de blusa e calcinha (por sinal um calçolão). Era uma visão aterrorizante. Felizmente ela nao tardou a se recompor.
Contou que num colégio onde dera aulas dissera:
--Consta que Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil...
Motivo pelo qual foi advertida pela diretoria:
--Você não pode dizer isso aos alunos.
Em aula seguinte repetiu a dose. Foi demitida.
Ainda contou -- não sei se mentindo ou dizendo a verdade -- ter na juventude sido mulher do Manfredo Colasanti, de haver passado uma noite inteira com o Lupecínio Rodrigues, de haver morado com alguns artistas bem baderneiros e dividir com eles o repúdio e a antipatia dos vizinhos.
Naquele período entretanto vivia com um mecânico beberrão e brigão, que odiava, à minha exceção, todos os amigos da mulher que moravam no bairro, pelo fato de eles sempre dividirem drogas com ela.
Uma vez um desses amigos, numa roda de cinco ou seis, perguntou se eu toparia um dia dar uns tecos, fazer sexo grupal e exercer atividades bissexuais. Respondi que tinha medo de usar drogas pelo risco de prisão e de ficar dependente e que, quanto à atividade bissexual, embora não me posissionasse contra, não tinha curiosidade nem interesse em praticá-la.
--Se é cético, já é um bom caminho. -- replicou ele com o apoio da Ângela.
Lá pelas duas da madrugada, quando este estava em outro bar, sentado com dois outros rapazes, resolvi, já bêbado feito um indigente doidão, fazer uma gozação com ele:
--Olhem, meus amigos, procurem não ir embora pra casa, não, porque depois vou distribuir "brioco" pra todo mundo.
Os dois riram sem entender nada, o que propusera também riu, mas um riso amarelo e extremamente sem graça. Naqueles dias as pessoas tinham vergonha de assumir a homossexualidade. Saí dali e fui perturbar outro.
Havia na Freguesia bares inteligentes. Salvo a Ângela, que tinha exatos cinquenta anos, éramos todos jovens e politicamenre embasados como a mulher. Eu era talvez o menos louco. Mas todos tínhamos responsabilidade política e social. Nós versávamos sobre diversos assuntos. Gostávamos de filmes, de músicas de boa qualidade, interessávamos-nos pela história do Brasil e do mundo, pela política nacional e internacional, pelos personagens que marcaram a vida do planeta. Nossa mesa de bar era rica em assuntos.
Não votávemos em ninguém por ser jogador de futebol, galã, palhaço, apresentador de tevê. Tínhamos aversão ao que chamávamos de direita, não achávamos bonito desempregar legiões de pais de família. Não nos passaria pela mente nada parecido com reforma trabalhista, previdenciária ou qualquer outra que servisse de instrumento para agredir quase uma sociedade inteira. Não comíamos estrume pelos olhos e ouvidos, pois não acreditávamos na grande imprensa nem nos formadores de opinião da mídia. Repelíamos com intensidade a tecnocracia, por sua total e absoluta carência de humanismo.
Não votávemos em ninguém por ser jogador de futebol, galã, palhaço, apresentador de tevê. Tínhamos aversão ao que chamávamos de direita, não achávamos bonito desempregar legiões de pais de família. Não nos passaria pela mente nada parecido com reforma trabalhista, previdenciária ou qualquer outra que servisse de instrumento para agredir quase uma sociedade inteira. Não comíamos estrume pelos olhos e ouvidos, pois não acreditávamos na grande imprensa nem nos formadores de opinião da mídia. Repelíamos com intensidade a tecnocracia, por sua total e absoluta carência de humanismo.
Havia por ali também gente reacionária, mas que a era por ignorância, estupidez, não levada a sério pelos esclarecidos, dentre os últimos o Célio, um "marchand" que, progressista, pregava no deserto suas ideias, ante o silêncio dos imbecis, que não o questionavam por puxassaquismo, já que esse ostentava boa posição social. Uma vez ele disse, com muita propriedade, que "o Brasil é um país bom pra se roubar, não pra se ganhar dinheiro". Os calhordas que não o retorquiam ficavam a ponto de querer me linchar quando eu defendia pensamento igual ao daquele homem. A grande parte deles já deve ter ido para o Inferno. Infelizmente a Ângela e o marido podem não estar mais vivos, e o "marchand" estará, se não morreu, estar pelos setenta e poucos anos.
Dizíamos não, tínhamos convicções firmes, e acho que, assim como eu, todos viram ao longo de todos esses anos os bares tornaram-se pobres de ideias, plenos de alienação e emburrecerem. Vimos a alienação crescer, encorpar-se, o futebol ser a prioridade absoluta de uma nação. Vemos uma sociedade assistir aos desmandos de políticos inescrupulosos sem um protesto sequer, de uma forma lamentavelmente bovina.
Barão da Mata